
Bacurau
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Em um futuro próximo, uma pequena cidade no sertão nordestino lamenta a morte de uma anciã. Dias depois, os moradores percebem que o local sumiu dos mapas e começam a ser aterrorizados por uma onda de assassinatos misteriosos.
O assunto hoje é a sensação que vem atraindo os olhares internacionais para as telas brasileiras. O longa-metragem Bacurau, dirigido por Juliano Dornelles em parceria com Kleber Mendonça Filho, vem colecionando prêmios mundo afora, como o Festival de Cannes (prêmio do júri) e o Festival de Cinema de Munique (melhor filme). Para saber mais, continue lendo!
Bacurau estreou no final de agosto em versões dubladas e legendadas, com a dupla intenção, segundo os diretores, de mirar as salas internacionais e de dar aos filmes um “ar” de matinê. A decisão foi criticada por muitos que acharam as legendas em descompasso com a fala nordestina dos personagens – a versão que vi foi legendada e devo concordar com as reclamações.
O filme conta a história de um povoado do sertão que simplesmente desaparece dos mapas. Não há internet nem telefones. A população fica totalmente isolada sem qualquer tipo de comunicação. Daí para frente, eventos estranhos e uma onda de terror começam a varrer o vilarejo, obrigando a população a inflamar sua brutalidade para proteger-se de uma ameaça ao mesmo tempo real e bizarra.
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Teresa (Bárbara Colen) regressa ao vilarejo onde nasceu, o que coincide com a morte da matriarca e anciã da região, Carmelita (Lia de Itamaracá). As cenas iniciais dão o mote para a denúncia de horrores nacionais que estão muito longe da ficção: carências diversas, falta de água e outros recursos. A partir do enterro de Carmelita, o realismo mágico então assume o controle da trama – inclusive lembrei de trechos de Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez.
O filme está repleto de violência e evoca as produções de cangaceiros da década de 1960. O embate com os criminosos ajuda na criação desse clima de “bang-bang”. As referências estéticas, porém, não param por aí. Como num thriller de Quentin Tarantino, o filme de Mendonça e Dornelles mistura suspense, terror, ficção científica, tecnologias à lá Black Mirror e até spaghetti western – subgênero de faroeste italiano, sucesso nos anos de 1960.
A violência no filme tem a preocupação de mostrar que ela machuca, não é bonita. O final do filme é extremamente triste, eu diria. Essa tristeza, é claro, vem com uma ideia de vitória, de uma sobrevivência, mas ela é triste. – Kleber Mendonça Filho, diretor.
Em tempos de acirramentos político e ações autoritárias que se procriam em todas as esferas de governo (vide o recente caso de censura na Bienal do Livro no Rio), seria inevitável que o filme se tornasse uma bandeira de protesto e repúdio. Apesar disso, os realizadores garantiram em coletivas de lançamento que o roteiro já estava pronto muito antes dos atuais governantes tomarem posse.
A gente captou uma energia, um estado de espírito do Brasil. Na verdade é sobre o Brasil e todos os problemas que enfrentamos, e parece sempre querer enfrentar, como se o país estivesse patinando nos mesmos problemas, como uma poça de óleo, e não consegue ficar de pé. Muito do futurismo do filme é passado, corrupção, violência, falta de respeito, falta de educação, problema da água no sertão. – Kleber Mendonça Filho
Entre os vários toques do já citado realismo mágico, há uma espécie de droga mística que dá ao povo de Bacurau o estranho poder de não se amedrontar frente aos inimigos. Para combater os assassinos, pessoas pacatas tornam-se tão implacáveis quanto seus perseguidores. O que subsiste por trás desses elementos fantásticos é uma radiografia atualizada dos dramas atemporais do Nordeste. A crueza do cenário – as cenas foram gravadas no Sertão do Seridó, entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte – reforça toda a brutalidade.
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O roteiro de Bacurau, assinado também pela dupla de diretores, é criativo e bem amarrado – talvez um tanto inflacionado, como veremos mais adiante. Mas o que dizer da fotografia, montagem e trilha sonora? Simplesmente incríveis!
A força maior do filme, no entanto, talvez esteja no elenco. É graças à entrega e engajamento dos atores à mensagem da obra que o resultado – para o bem e para o mal – adquire tons panfletários; para o “mal”, penso eu, porque tamanha contundência no protesto, embora compreensível dado o cenário político atual, deixará de legado ao futuro um filme um tanto maniqueísta.
A atriz Sonia Braga, de 69 anos, dá um show à parte no papel de Domingas, uma personagem perturbada e de caráter muito ambíguo (uma chave de sua profundidade psicológica está na maneira como ela projeta sua raiva e frustração sobre a imagem da “anciã-celebridade” do povoado, Carmelita). Muito longe de querer evocar seu passado mítico de sex symbol, a atriz desponta nas telas como uma idosa de cabelos brancos e alma sofrida. Em Cannes, Sônia Braga aproveitou para dedicar o filme à Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em março de 2018.
Conheci Marielle num debate sobre violência na época da Intervenção Militar no Rio. Fiquei impressionada. Ela contava o que estava acontecendo e dizia: ‘O importante é que a gente continue vivo.’ Quinze dias depois, vem a notícia de sua morte quando filmávamos Bacurau. – Sônia Braga.
Silvério Pereira é outro destaque na interpretação do foragido Lunga, que ele encarna com um carisma espantoso. A história de Lunga é outra que está longe de ser “plana” ou simples de dimensionar. Suas razões e motivações deslizam todas sobre o fio de navalha de sua vida pessoal: a condição de ser ao mesmo tempo bandeado e celebrizado pela população local.
Uma surpresa para mim foi o ator alemão Udo Kier no papel do assassino Michael. Apesar do apelo de filme blockbuster que sua presença poderia sugerir, ele soube dar o recado sem os clichês de Hollywood, com aquela típica afetação dos vilões de frases feitas (de um Mel Gibson em Os Mercenários 3, por exemplo). O encontro dele com a personagem de Sônia Braga é um dos momentos de maior carga simbólica do filme (o embate de dois polos brutais com visões de mundo muito antagônicas, e inconciliáveis).
Bacurau não é uma obra fácil de digerir. Além das cenas fortes e toda tensão social que retrata, o filme tem ritmo e cortes de cena que talvez agradem menos as plateias afeitas às produções com estética mais novelesca da Globo Filmes (em Bacurau, ela é uma entre as coprodutoras). Em resumo, o longa exige do público tanto em estética cinematográfica quanto em consciência política.
Quando a gente faz um filme, espera que o público se conecte com ele de algum modo. ‘Bacurau’ tem mostrado uma capacidade forte de mexer com as pessoas em suas pré-estreias mundo afora. – Juliano Dornelles, diretor.
Tantas alusões e “mensagens”, porém, deixaram também suas marcas no fôlego da trama. De tanto querer denunciar, Bacurau às vezes “afoga” o espectador em seu mar de pautas políticas. O convite à reflexão sobre as mazelas contemporâneas enfraquece o desenrolar de algumas cenas, que acabam gerando menos impacto do que poderiam (e deveriam, pelo bem do enredo). Fica claro o apetite ideológico da produção. A gula, entretanto, como todos sabem, sempre foi um pecadinho mais simpático que os demais.
Bacurau merece ser visto. De preferência, mais de uma vez, para melhor compreensão de tantas questões e problemáticas pontiagudas que traz à tona. Se você gostou desse artigo e também é louco por cinema, confira muito mais aqui no blog!
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